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sexta-feira, 20 de maio de 2011

O homem que chorava sumo de tomates

O Nacional Cine-Teatro (Chá de Caxinde) está a passar a temporada 2011 da já conhecida Companhia de Dança Contemporânea de Angola, [ CDCA ]todos os fins-desemana de 29 de abril a 22 de maio.

No jeito crítico e profissional que Ana Clara Guerra Marques, sua diretora artística, coreógrafa e professora de dança já nos habituou neste longo consulado de 20 anos de trabalho (1991-2011), a peça levada desta vez ao palco chama-se “O Homem que Chorava Sumo de Tomates”. Nesta obra artística de nome tão sugestivo, quiçá enigmático, é na “dissecação social” das desigualdades entre a maioria pobre e a minoria abastada que a coreógrafa afirma dar vida aos corpos dos bailarinos. Assim, num conjunto dos doze espetáculos pretende pôr as pessoas a perceberem o que é a dança contemporânea. E desde já avisa: Não quero que as pessoas se venham divertir nos meus espetáculos, porque a arte é antes de tudo uma forma de consciencialização. Mas também de brincar, a minha mensagem também é de humor.

Há coisas fortes, mas também há um dedo de afeto. * Diz o senso comum que não se fazem omeletes sem ovos. Então, quais são os ovos que a Ana Clara foi buscar desta vez para cozinhar tão polémica omelete, amada por uns, detestada por outros, e vista como um ritual mais ou menos por alguns outros mais céticos? Em primeiro lugar, a matéria-prima em termos de recursos humanos é o corpo dos seus sete musculados, energéticos e tecnicamente bem treinados jovens bailarinos, entre os quais se inclui um jovem paraplégico de olhar sereno mas determinado. A juntar, um ator convidado, uma bailarina convidada e quatro figurantes. Como recursos artísticos, tecnológicos e documentais, doze interpretações de músicos de diversos matizes e origens sendo de realçar que um deles é angolano, a animação de desenhos de Frederico Ningi pela internet e o recurso à vídeo-arte. Uma escultura de Mário Tendinha, professores de canto e de língua, costureiros, e todo um aparelho técnico e de produção que tal empreendimento envolve.

Na linha da dissecação social já referida, a coreógrafa concebeu todo um conjunto de dezasseis cenas expondo várias linguagens de danças e ritmos angolanos, entre os quais pontuam pela primeira vez toques de milindro, kuduro, kasukuta e kambuá, danças urbanas de Luanda que estão na cena do dia. Alguns deles envoltos em sombras de nomes engraçados de uma lista original em termos de ortografia, em paralelo de certa forma com o português mwangolê que o povo escreve tal como fala, patente nos cartazes em papelão expostos nas paredes da sala do Nacional.

Por experiência própria, há que reconhecer que a identificação dos códigos ou símbolos culturais ou individuais usados nem sempre é de fácil descodificação pelo espectador comum, por algum hermetismo contido nas suas mensagens. Mas, apesar disso, considero que o cerne da mensagem geral que a coreógrafa quer passar atinge o espectador, sem dúvida.

E qual é então essa mensagem, ou melhor, quais as mensagens mais fortes e melhor conseguidas nas várias cenas levadas ao palco? A minoria pobre começa por estar representada na cena de abertura (Yntro na city) ainda fora do palco um olhar crítico para a zunga na rua com os vendedores ambulantes a fazerem das tripas coração tentando rapidamente vender os seus produtos importados e garantir a parca sobrevivência sua e das famílias, antes que o fiscal do governo apareça para lhes pentear o produto junto com o dinheiro da sobrevivência. Como dizia um deles, a rir, em plena cena, fazendo teatro: O meu trabalho é digno, não estou a roubar, mas eles estão sempre a nos ‘presseguir’, assim quando chegam temos de lhes dar a gasosa.

Na mesma linha desta dura luta, em “Sangue que dansa” e “Um Morto em Pá”, a coreógrafa aponta o dedo acusatório contra as autoridades que descuidam a problemática da pesca ou a caça ilegal (o som do tiro na água), que metem em risco a sobrevivência das comunidades, algumas minorias étnicas. Os dançarinos estão de mãos amarradas atrás das costas, encenando a impotência dos caçadores para fazer algo contra.



A linguagem dos estalidos dos kamussekele, uma minoria em risco de extinção, em sintonia com a música dos Aboriginal Beats e o frenético batuque numa simbiose artística com a dança dos moribundos ressurgindo das cinzas, e a cova com a pá ao lado na imagem em vídeo, são um dos momentos mais altos do espetáculo, uma cena muito forte ressuscitando as nossas emoções e sensibilidade vivendo dramáticos momentos de crise de identidades, contra a pobreza que os nossos olhares confortáveis fingem não ver.

Tal como a falta de solidariedade com os portadores de deficiência física (Môkamba) ávidos de uma oportunidade para saírem da marginalização, uma cena de dança inclusiva de catarse bem conseguida motivando as nossas palmas.

Mas onde está então o Homem que Chorava Sumo de Tomates? Ele surge na cena número 7, representado num dos desenhos do poeta, depois de passar pelas mãos do animador Nelo Costa. Vamo-nos socorrer do texto produzido pela coreógrafa para sabermos um pouco mais: “um homem insensível às crianças pobres de rua, chorava poças vermelhas que rivalizavam com as de água estagnada das ruas, é esposo da mulher (homem) que aparece vestida de noiva a caminho do altar (cena 14-Poligamia) rodeada de um séquito de amigos de peito de quem recebe acessórios de marca, as chaves de um jipe de luxo e de um apartamento, um telemóvel, dinheiro para extensões de cabelo liso. E que trai o marido, miserável, quando ele sai para a zunga”. Sugere o texto que “cansado da vida miserável, este homem teria resolvido mudar de estatuto transformando-se num cidadão consumista mas livre, desvairado, com tiques e hábitos do atual macho sem pudor nem recato, sem regras nem decência, protagonista de um certo caos social (…).

Está sentado sobre o triste e longínquo passado dos seus antepassados, enlouquecia gritando palavras que ninguém entendia (no war, guerra não) contando estórias na língua dos avós que afinal não era de todos. Decidiu globalizar-se e aprender inglês, tornou-se arrogante e abandonou a infinitamente sábia tradição”, ou seja, alienou-se. Mais tarde viria a ignorar a morte, desejando uma gravata de seda vermelha, um helicóptero (cena 15Hely Pá Trão) e um apartamento de luxo com garagem para dois carros. Acabou morto, a esvairse em sangue e a chorar uma felicidade efémera disfarçada de sumo de coragem (de coragem, ou de tomates? pergunta-se.) “Porkus Sysnes” (cisnes negros vs. cisnes brancos, os verdadeiros, símbolos da pureza no imaginário das culturas ocidentais compondo ambientes de estórias idílicas no ballet clássico), numa dança perfeita de grande qualidade técnica, artística e estética. Tudo, menos Porkus! (desculpem, mas ‘desconsigo’ na descodificação!). “Malukus em Rutinas”uma crítica ao mau gosto no vestir, à falta de boas maneiras na ótica da diretora artística, uma chamada a um modelo estereotipado de comportamentos e gestos na sociedade em mudança? Uma cena de humor, sem dúvida, de veia cómica, corpos masculinos negros e fortes dos bailarinos contrastando com cuecas tão branquinhas de invejar, sem calças, sem meias, apenas um laço ou uma gravata, vermelhos, pendurados ao pescoço. Não esquecer que o Homem que chorava sumo de tomates desejou um dia uma gravata de seda vermelha… “Genuinu Femininu” um excelente número de dança tradicional chianda, mas com uma subversão da tradição: uma mulher não pode dançar com máscaras (Lundas e Moxico).

Por fim, “Lágrimas de Kroke u Dilu” novamente o desenho animado de Ningi, num diálogo cultural aberto com as novas tecnologias globalizantes, fazendo as lágrimas vermelhas do sumo de tomates (vs. sumo de tomate, a expressão correta) correr dos olhos do Homem enigmático que dá o nome a esta obra. Lágrimas de crocodilo, falsas, lágrimas fingidas, não autênticas, que não saem do fundo do coração, da verdade.

Uma postura epistemológica desta persistente e corajosa coreógrafa e professora de dança, devidamente sustentada ao longo dos seus trabalhos e investigações: “A Companhia é responsável pela rutura estética e formal da dança angolana” (entenda-se, da dança tradicional). Dentro dessa corrente de contemporaneidade ela não está sozinha. Advogam a mistura consciente entre elementos tradicionais e pós-modernos, e recusam o espartilho de uma africanidade rígida.

Mas o debate sobre a dança contemporânea em África (e em Angola) ainda vai fazer correr muita água debaixo da ponte; é ainda muito pobre, há problemas de financiamento dos grupos, os estudos de investigação das danças africanas presentes no espaço continental ainda é muito débil e as dificuldades em matéria de liberdades de expressão amordaçam os criadores.

Ana Faria, O homem que chorava sumo de tomates "uma tentativa de compreensão da obra artística”, O País online, [url] http://www.opais.net/pt/dossier/?id=1&det=21104.


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